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Um instante de amor: um caso de neurose histérica ou psicose?

(Ana Beatriz Manier – Corpo Freudiano de Nova Friburgo)

Interior da França, meados da década de 1940. Gabrielle, a protagonista, é uma mulher na faixa dos 20 anos, que vive com os pais e a irmã, numa fazenda produtora de alfazema. Na primeira cena em que ela nos aparece dentro de uma ordem cronológica – o filme tem início em in media res –, está em pé, dentro de um rio, o vestido levantado para que a água toque levemente seu sexo. Após um lapso de tempo, ela está numa sala de aula vazia, conversando com um tutor. Ela estuda via cursos por correspondência e isso a aborrece. Não gosta das leituras silenciosas e solitárias, principalmente dos textos de história.

Sem lhe dar muita atenção, o tutor a chama para entregar um romance para leitura extensiva. Gabrielle observa o tutor com um movimento corporal sedutor, elogia sua caligrafia, percebe o suor debaixo de seus braços. “Está com calor”, diz, causando a ele grande desconforto. Ele se livra da sedução. Ela sai da sala.

Em seu trajeto para casa, ela passa por alguns terrenos descampados e então por campos de alfazema pertencentes à sua família, onde homens de aparência rural e embrutecida fazem a colheita. Eles a percebem, ela não. É como se eles fossem parte da paisagem.

Em casa, os pais e a irmã adolescente jantam na sala. Ela beija a irmã, não se senta à mesa, vira-se de costas para a família, coloca o prato sobre uma cômoda e come. Em novo lapso de tempo, Gabrielle está lendo na cama, o corpo mais uma vez em movimentos sensuais. O livro entregue pelo tutor – O morro dos ventos uivantes – tem a assinatura de seu primeiro dono: um homem desconhecido. Gabrielle acaricia lentamente a assinatura, avança algumas páginas e passa a língua sobre uma delas. Depois, nua, escreve cartas de amor carregadas de erotismo.

Em momento posterior, durante uma festa que a família oferece aos empregados e à comunidade em comemoração à boa colheita, o tutor de Gabrielle aparece com a esposa grávida e é observado por ela, em êxtase. Na primeira oportunidade que tem, ela o persegue e entrega a carta. O tutor a rejeita. Ela o agride momentos depois, na frente de todos os convidados. A mãe de Gabrielle, ciente de seus movimentos, preocupa-se. Após a agressão, Gabrielle sai correndo descontroladamente pela mata, onde só será encontrada, desmaiada, na manhã seguinte.

À noite, em seu quarto, ela ouve conversas dos empregados no pátio logo abaixo, vai à janela e de lá e se apresenta nua para eles. “Está maluca…” “Precisa ser resgatada…” são alguns dos comentários ouvidos.

A mãe de Gabrielle ouve o vozerio e decide agir. Sua primeira atitude é levá-la a um médico, que a diagnostica como “doente dos nervos” e lhe oferece a possibilidade de internação. Gabrielle, ciente de que a consideram louca e ciente de que não é, tem uma crise de cólicas na frente do médico. Mãe e filha saem do consultório sem uma definição do que fazer.

De volta à casa, um dos empregados ouve Gabrielle ao piano e se encanta com ela. Seu nome: José. A mãe de Gabrielle percebe seu encantamento e vai procurá-lo. Troca algumas palavras com ele, e lhe oferece a filha em casamento – José é um homem de poucas palavras, pedreiro de talento, trabalhador, sólido. É marcado um encontro formal para a família o conhecer melhor e oficializar o interesse dele por Gabrielle.

Ela, num primeiro momento, o despreza e tem nova crise nervosa. A mãe a ameaça: se não der um rumo à própria vida, será internada. Posto isso, a moça resolve aceitar o casamento, mas deixa claro ao pedreiro que não o ama, que não dormirá com ele, e que ele não será feliz. Ele aceita mesmo assim e, quando indagado sobre como fará em relação ao sexo, responde que há outras mulheres que poderão satisfazê-lo.

O casamento acontece, a mãe parece satisfeita por ter dado um rumo à vida da filha. Gabrielle e José mudam-se para uma cidade ao litoral, onde ele abre um escritório de construção e a leva para secretariá-lo.

Com o passar dos dias, sem intimidade com o marido, ao perceber que ele sai de casa para se relacionar com prostitutas, Gabrielle lhe pergunta o quanto paga a elas e concorda em se relacionar com ele pela mesma quantia. Veste-se como uma prostituta e eles fazem sexo. Não há carinho, ela não sente prazer. Há apenas o ato em si. Gabrielle parece decepcionada com o que é “fazer amor”. Nada sentiu e logo se lava. A sequência de acontecimentos dá a entender que outras relações sexuais acontecem da mesma forma.

Meses depois, José mostra a Gabrielle a casa que está construindo para eles, e ela passa mal. Um corrimento lhe desce por entre as pernas. Uma médica lhe diz que ela sofreu um aborto. Estava grávida e não sabia. Junto com isso, recebe o diagnóstico de “Mal de Pierres” (doença das pedras). São pedras nos rins que lhe causam as dores tidas como cólicas. E, se não forem tratadas, poderão ocasionar novos abortos. Fica decidido que Gabrielle se internará numa clinica para se curar. É um tratamento caro, com duração de seis semanas, mas José pagará por ele. O lugar é triste, observa ela. Ela é triste, e, numa primeira entrevista com o médico da clínica, sugere que não tem vontade de se curar.

No dia a dia da clínica, Gabrielle se afeiçoa a uma camareira (Agostine) e passa a acompanhá-la pelos corredores. Interessa-se em especial por um paciente de quem ela cuida: um oficial doente que lutou na Guerra da Indochina – ainda em curso. Seu nome: André Sauvage. É um homem bonito, educado, leitor. Um oficial com condecorações e um doente acamado. Ela passa a visitá-lo diariamente, a se interessar por ele. Ouve-o tocar a Barcarola de Junho ao piano. Apaixona-se. Passa a visitá-lo mais. Ganha um livro de presente dele, acaricia suas mãos delicadas, faz planos de passear com ele, sem notar que seu estado de saúde é gravíssimo. Ele tem uma palidez crônica.

Com o livro nas mãos, Gabrielle desce as escadas e é avisada de que o marido a visita. Ela se surpreende. Em seu estado onírico de paixão pelo tenente Sauvage, fatos reais lhe escapam. Não lembrava que o marido iria visitá-la. Diz a ele que sempre que ele aparece chove. Pergunta quando ele irá embora e se decepciona quando ele diz que passará a noite na cidade, em uma pensão.

Há uma troca de cena: Gabrielle sobe ao quarto do tenente, que está em crise, se contorcendo de dor. Ela se senta em sua cama, e eles se acariciam de forma erotizada.

No dia seguinte, enquanto lê no jardim, ela vê que o colchão do quarto do tenente está sobre a janela, para ventilar. Sinal que ele não está mais lá. Em seguida, vê uma ambulância o levando embora. Conclui que o tenente foi levado para morrer em outro hospital. Desespera-se. Passa três dias de cama, em choque.

Então, um dia, está no salão de refeições e vê o tenente retornar, recuperado. Estamos em 1h07minutos de filme: hora de dar uma parada e analisar o que se viu até aqui.

Freud, em “A pulsão e seus destinos”, nos apresenta a pulsão como o representante psíquico de um impulso que se origina dentro do próprio organismo, de forma continua, e do qual não é possível se livrar, uma vez que ela integra o funcionamento psíquico do sujeito.

Pelo que se tem acesso até aqui ao comportamento de Gabrielle e ao ambiente em que ela vive – à sua linguagem corporal, à sexualidade/afetividade transbordante pelo corpo; ao aparente isolamento social em que ela se vê imersa, à relativa aridez do local em que vive, a leitura de romances de idealização amorosa. Depois ao seu casamento, à dificuldade de conexão com o marido, à sua indiferença ao sexo, à própria gravidez e aborto, às pedras nos rins. E, principalmente, ao seu sentimento de tristeza que só vai embora quando ela se vê apaixonada pelo tenente –, podemos observar que há nela uma grande carga de energia pulsional que, sem encontrar caminhos adequados para liberação, extravasam de formas que fogem ao seu controle.

Freud, em mesmo artigo, dualiza as pulsões em: 1)pulsões do ego, as pulsões de autopreservação, e em 2) pulsões sexuais, as que buscam prazer, desde a fase narcísica primária da criança.

Em relação às pulsões sexuais – no filme, evidentes em Gabrielle – Freud vê nelas vê quatro componentes: 1) a meta ou finalidade. Toda pulsão almeja a satisfação, tem-na como meta e, na impossibilidade de atingi-la, seja por fatores culturais ou de outra ordem, inibe-a. 2) o objeto. Pulsões não satisfeitas buscam objetos que se apresentam de forma variável, i.e., vão se alterando ao longo do tempo em que representam aquilo que continua perdido, aquilo que não se consegue alcançar. 3) a pressão. Pulsões são energias associadas a uma representação e exercem atividades que incidem sobre o psiquismo de forma constante e ininterrupta, exigindo satisfação. 4) a fonte. A fonte é uma excitação corporal, um processo somático. A pulsão encontra descarga em uma parte do corpo e interfere em seu funcionamento.

“A pulsão nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida de exigência feita à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo” (FREUD, 1925, p.127).

A forma como cada sujeito lida com suas pulsões sexuais não atendidas e a forma psíquica como cada um irá se estruturar têm sua origem na fase seguinte à narcísica, durante o Complexo de Édipo. É na fase edipiana que ocorre a castração e há a interdição do pai (ou do nome do pai), fase em que a criança percebe que não pode ter tudo o que quer, que a mãe ou cuidadora não lhe pertence de forma exclusiva – pois sente também desejo por outro. Diante da castração, espera-se que a criança crie o simbólico, uma linguagem metafórica para lidar com o choque dessa interdição, desse não, dessa falta. Falta que ela percebe na mãe, por desejar outro; falta que ela percebe em si, por não ter a mãe em completude. É, pois, nesse momento do confronto com a falta, que o sujeito reagirá de uma ou outra forma, sendo a sua escolha a definição da estrutura psíquica que permeará sua vida.

Em linhas gerais, quando a criança se põe à procura de algo que a conforte, sem saber o que é (ela pode começar a chupar o dedo, a ter alguns objetos como fonte de conforto, por exemplo), ela está se estruturando de forma neurótica. É característica da estrutura neurótica reconhecer a falta, sentir o vazio e não saber exatamente o que se quer para preenchê-lo (talvez uma nova ocupação, numa fase mais adulta; um status, um grande amor…). Isso se dá de forma repetida e variável (as pulsões estão em constante busca por objetos), pois quando se consegue o que se quer, percebe-se que não é exatamente aquilo, e parte-se, novamente, para o novo. O neurótico vive em constante desencontro.

É também característica do neurótico recalcar desejos e gerar tipos de neurose ou sintomas neuróticos que, em linhas gerais, são a fobia, a histeria e a obsessão. A histeria é o que irá nos interessar aqui, por seus sintomas serem visíveis em Gabrielle, como se pode constatar a seguir.

É traço comportamental do histérico ter seu corpo todo muito erotizado e constantemente sujeito a excitações, ao mesmo tempo em que apresenta um desinteresse pelo sexo real, não fantasístico. Paradoxalmente, há uma inibição sexual que pode levar a um desinteresse, uma aversão ao sexo de fato – ao sexo possível. As fantasias sexuais histéricas não costumam ser vulgares, são românticas, narcísicas, autoeróticas. Assim são as fantasias da protagonista Gabrielle, com outros homens, ao passo que desinteressada é ela em relação ao sexo com o marido.

É típico do histérico sentir tristeza, angústia, faltas constantes, e criar laços com os outros a partir de suas fantasias. Por que a fantasia? Porque o histérico teme que, se seu desejo e seu gozo forem satisfeitos, ele poderá obter tal grau de prazer que irá desintegrar-se. Para o histérico, “só existe o gozo insatisfeito” (Násio, 2017).

”O histérico é fundamentalmente um ser de medo que, para atenuar sua angústia, não encontrou outro recurso senão manter incessantemente, em suas fantasias e em sua vida, o doloroso estado de insatisfação.” (Násio, 2017)

Duas fantasias são constantes para manter a insatisfação do histérico: olhar para o Outro como alguém inatingível, de quem ele sempre estaria abaixo, solicitando atenção, ou como alguém fraco e doente, que lhe despertaria compaixão. No caso de Gabrielle e de seu interesse pelo tenente, temos ambas fantasias presentes: ele é um oficial condecorado e herói de guerra, acima de sua classe social, assim como um homem doente e frágil, para quem ela seria imprescindível.

Grande parte do discurso de suas analisantes, percebeu Freud, não pertencia a fatos da vida real, mas a elaborações mentais de romances idealizados, de amores sofridos e trágicos. Vale ressaltar aqui que Gabrielle estava lendo o Morro dos Ventos Uivantes, um romance igualmente trágico (neste romance há dois grandes impedimentos para que o amor dos protagonistas, Catherine e Heathcliff, se consuma: a diferença social entre eles e o fato de ela ser casada) que dialoga com a forma como se desenrolará o envolvimento de Gabrielle com o tenente.

 As histerias podem ser divididas em alguns tipos, entre eles a histeria de conversão, que promove “a transformação da excitação psíquica em sintomas somáticos crônicos” (Freud, 2017). Parece, até aqui, ser esse o tipo de histeria que acomete Gabrielle, uma vez que, além de toda a excitação corporal, ela desenvolve também o “Mal de Pierres”, mal das pedras, pedras nos rins. É como se suas pulsões sexuais, não conseguindo se manter recalcadas, e não sendo todas elas liberadas pela erotização do corpo, ficassem em parte calcificadas, convertidas em pedras renais.

Voltando ao filme, a partir dos 1h7minutos, uma sequência de ações se desenrola até o final, podendo colocar em dúvida a ideia de histeria que até então se atribui à protagonista.

Quando o tenente retorna à clínica e entra no salão de refeições onde está Gabrielle, ela se espanta por achar que ele havia morrido, e ele justifica sua presença, dizendo que recebeu tratamento adequado, teve grande melhora e que retornava para vê-la.

A partir daí, para o espectador, Gabrielle e o tenente Sauvage vivem um breve romance, com momentos de intimidade e prazer sexual. Tiram uma foto, como se fossem um casal. Estão apaixonados, passam dias de intenso amor. Mais à frente, o tratamento de Gabrielle chega ao fim – está curada do Mal das pedras – e ela deve retornar para casa. O marido vai buscá-la.

Sem querer voltar, ela corre ao encontro do tenente, que lhe fala da impossibilidade de eles ficarem juntos no momento. Segue-se uma promessa de troca de cartas e de um encontro futuro. José paga as contas de seu tratamento e o casal volta para a casa. Meses se passam com Gabrielle escrevendo cartas de amor para o tenente e aguardando ansiosa por respostas. As cartas têm um tom desesperado, suplicante, e é constante nelas menções  aos desejos de seu corpo: quer sentir o tenente dentro dela, seu corpo arde…

Um dia, todas as cartas escritas por ela retornam, sem nunca terem sido lidas. Ela tem um descontrole emocional e agride o marido. Já havia contado a ele que conhecera um homem na clinica e se apaixonara. Escreve uma última carta ao tenente dizendo estar grávida de um filho seu e que, sem um retorno, será o fim do romance deles.

Quando seu filho nasce, ela pouco se conecta com ele. José, ao contrário, mostra-se um pai amoroso. Mais crescido, o menino aprende a tocar piano e, quando adolescente, José o inscreve em um concurso nacional de piano em Lyon, para onde a família parte para a audição. A caminho do teatro, durante uma parada no trânsito, Gabrielle vê a placa da rua para onde enviava as cartas ao tenente. Sai apressadamente do taxi, deixando o filho e o marido sozinhos, e vai até o endereço.

A bater à porta, o oficial que a atende informa que o apartamento está à venda, pois o general falecera há três meses e o tenente falecera logo após deixar a clínica. O oficial se lembra de ter visto Gabrielle na clínica, assim como de tê-la visto testemunhar a remoção do tenente.

Gabrielle nega veementemente a morte do tenente – ele retornou! –, mas, a partir de então, começa a duvidar se o romance que viveu foi real ou não. Aos poucos, a caminho de casa, ela vai relembrando os momentos que passou na clínica, e flashes de realidade vão lhe voltando à mente. Num desses flashes, pergunta ao marido se ele foi visitá-la. Ele confirma, acrescenta que não conseguiu dormir na pensão e que foi ao quarto dela. Gabrielle chora, cada vez mais perto de descobrir que o sexo arrebatador tido com o tenente, fora, na verdade, com seu marido.

A partir do momento em que é revelado para o expectador que a experiência romântica de Gabrielle foi uma experiência delirante, uma alucinação, ou seja, que ela inventou e acreditou ter vivido toda uma situação fantasiosa para destinação de seu afeto, outra forma de interpretação se tornou possível quanto à sua estrutura clínica: a psicose.

Retomando o texto A pulsão e seus Destinos (Freud 2013), no confronto com a castração, outras saídas além da neurose são possíveis para a criança: a perversão (que não se aplica ao contexto do filme e por isso não é desenvolvida aqui) e a psicose.

Na psicose, o sujeito não consegue aceitar a castração, simbolizar o real, e por isso cria uma situação que lhe seja aceitável para viver a interdição. Isso acontece dentro de um estado de “falta de razão”, com delírios criados de forma autônoma e de acordo com os desejos recalcados. É criado, então, um mundo interior que irá substituir o mundo exterior (Freud, 2016). E, nesse mundo substituto, suas fantasias podem se realizar.

 Em sua análise do caso Anna O., de Breuer, famoso caso de histeria da psicanálise, Freud (2016) narra que Anna, moça “de vitalidade intelectual transbordante” criada em uma família de tendência puritana, levava uma vida extremamente monótona, sem ter vivido qualquer relação amorosa, a qual embelezava de um modo que chegava a alimentar sua doença: ela “cultivava sistematicamente o devaneio, que denominava seu ‘teatro particular’”, vivendo “contos de fadas”, de uma forma, porém, que ninguém percebia. Foi depois de manifestada sua doença, com inúmeras complicações físicas (dores, tosse, paralisias, câimbras e cegueira, consideradas da ordem da conversão histérica), que suas alucinações tornaram-se mais atordoantes também. Ora elas eram positivas, com ausências contendo “composições poéticas livremente criadas”; ora negativas, com seus cabelos e cordões virando serpentes. Esses delírios, no entanto, depois de narrados, lhe causavam alívio.

Embora filmes, em geral, não deem maiores informações sobre a vida de seus personagens além do exposto nos recortes que vão a público, algumas interseções podem ser feitas com o que se mencionou de Anna O. até aqui e o que sabemos de Gabrielle, reforçando o quadro de histeria em ambas:

– uma vitalidade transbordante versus uma vida monótona;

– a ausência de uma vida amorosa;

– uma crença religiosa que inibe a sexualidade;

– conversões histéricas;

– alucinações;

– cura pela fala. Para Anna O. via recordação, repetição, elaboração dos traumas vividos; para Gabrielle, via uma sucessão de provas irrefutáveis de seu delírio, que a levaram a falar sobre ele com o marido e, então, “voltar à razão”.

Freud iniciou seus estudos sobre o delírio através da análise das neuroses, em especial da histeria, e, entre suas descrições da alucinação, uma delas foi a de ser “uma estratégia primária, ainda que inadequada, para o sistema obter uma satisfação do desejo”. Há no neurótico, um conflito entre o Eu e o Id (seu mundo interior, inconsciente), e as alucinações histéricas são um fracasso da repressão/recalque desses desejos não satisfeitos.

De forma diversa, na psicose, o conflito maior se dá entre o Eu e o mundo exterior, sendo sua forma mais notável de expressão uma “confusão alucinatória aguda” em que o mundo exterior não é percebido ou o é de forma totalmente ineficaz (Freud 2016). Neste caso, não há a percepção de novos fatos, nem margem para novas interpretações de fatos antigos, o que, notadamente, contradiz o ocorrido com a personagem Gabrielle.

Enfim, sem que se pretenda fechar um diagnóstico definitivo sobre a personagem, todo seu comportamento nos leva a um quadro de neurose histérica com incidência de alucinações,  em detrimento de um quadro de psicose.

Bibliografia:

  • Freud, SigmundAs pulsões e seus destinos. Edição bilíngue. Trad. Pedro Heliodoro Tavares [Belo Horizonte, Autêntica 2013]
  • Freud, SigmundEstudos sobre a histeriaObras Completas Vol. II Paulo Cesar de Souza e Laura Barreto [São Paulo, Cia das Letras, 2016].
  • Freud, SigmundNeurose , Psicose, Perversão. Trad. Maria Rita Salzano Moraes. [Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2016]
  • Nasio, J.DA histeria: teoria e clínica psicanalítica. Rio de Janeiro, Zahar Ed. 1 ed. 2017.

“Um instante de amor,” um caso de neurose histérica ou psicose?